Wednesday 29 September 2010

à medida que os outros nos conquistam - 1




Já eram dez horas da manhã e nada dele chegar. Rivka estava com o rosto sobre um dos braços, debruçada sobre a janela, sonolenta. As vezes seus olhos se fechavam, devagar, mas ao primeiro ruido de carro na rua ela levantava a cabeça ansiosa, procurando a fonte do som com o mais bonito olhar de esperança. Não, não é o papai.
Já fazia tanto tempo que não o via! Quase um terço da vida dela. Voltou à escola, e agora estava finalmente aprendendo a ler e fazer contas. No período da guerra passava o dia inteiro trancada no fundo da casa, com sua mãe chorosa a abraçando dizendo que tudo ia ficar bem, que o pai ia ficar bem, que estando ele lutando perto era mais fácil das notícias chegarem do que se ele estivesse do outro lado do planeta. A menina não entendia, porém percebia que tinha que ter uma postura de força, mais até do que a mãe, que era mais instável do que devia numa situação daquelas. Mas já se passaram meses daqueles dias duros, e ela esperava eufórica o momento de escrever seu próprio nome e o nome de seu pai no caderno que ela decorara para os dois se divertirem.
Estava com sete anos; o pai, Ravid, partira quando ela tinha cinco. Lembrava-se dele vagamente, mas estas vagas lembranças carregavam uma forte emoção. Eram cenas mentais distintas: ele perto do balanço onde ela brincava, fumando um cigarro no canto da boca e sorrindo com a outra metade do lábio. Ela espionando os dois na cozinha: ele e a mãe Erelah brincando e dando beijos enquanto faziam um bolo de chocolate, o pai passando a espátula na boca da esposa e roubando mais beijos, em meio a risos e olhares furtivos à porta. O momento que ele partiu, deixando a mochila militar cair no chão para dar um último abraço na filha.
Não entendia essas guerras, essas brigas de gente grande. Demorou vários meses para se dar conta que seu pai corria risco de vida. Não entendia direito o que era vida ou morte, nem quando seu avô morreu ela percebeu a importância que os adultos dão a essa passagem. Também não sabia direito o que seu pai fazia na guerra, e uma vez um menino árabe disse que seu pai matava pessoas, e ela não acreditou. Faris era o nome do menino. Era um órfão, segundo sua mãe, que foi adotado na missão e lá vivia, alguns anos mais velho que a própria Rivka. Ela percebia que os outros meninos evitavam andar com ele, mas o árabe não se importava. Carregava aquele ar dos adolescentes, marrento, vivia resmungando e chutando pedras e outras coisas pelo caminho. Tinha os ombros pesados, tinha as roupas sujas e surradas, surgia e sumia do nada pelas vielas do bairro judeu. Uma vez a menina tentou cumprimentá-lo, ele a olhou friamente e lançou o duro comentário sobre seu pai e sua raça , a que chamou de "nação de assassinos". Não entendia direito o que significava a palavra raça ou nação, ou porque eles dois eram diferentes em raça apesar dos mesmos traços. Perguntara a sua mãe, e ela disse " Nossa família, Rivka, a nossa e a de todos nesse bairro são abençoados, escolhidos por Deus, somos o povo dele", o que a fez perguntar-se também se isso significava que ela, tão frágil e pequena, era melhor do que o menino de densas sobrancelhas que a espiava quando ia à escola. Um dia ele sumiu; e sua mãe disse que tinha fugido do bairro protegido e foi morto. A morte, novamente, incompreensível.
Um ruído, o pai ! Ouviu o choro da mãe ao abrir a porta e abraçar o homem que acabara de chegar. Aquele é seu pai? Parecia tão mais imponente quando partiu! Agora era um desconhecido magro, com aparência de doença, olheiras profundas sob um dos olhares mais tristes que já vira naquele lugar castigado pela dor. Rivka foi até a porta também, agarrada ao bichinho de pelúcia que ganhara do pai na sua ausência, por correio, no seu aniversário de seis anos. Ravid a olhou, os olhos cheios de água; viu o brinquedo em sua mão, abriu um sorriso tímido e os braços. A filha finalmente sentiu que sim, aquele era o herói de que tanto sentia falta, correu para o abraço, e descobriu o significado da palavra saudade.

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